Uma perspectiva teórico - experiencial de uma pessoa autista sobre um momento de crise.
- Juliana Pellegrino
- 6 de dez. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 7 de dez. de 2023

Há mais ou menos umas duas semanas eu tive uma reunião. Tenho noção que essa é uma situação que quase ninguém gosta, vide os diversos memes sobre o tema, rs.
Mas usarei essa situação para exemplificar algumas vivências experimentadas por neurodivergentes TEA.
Essa reunião tentou ser marcada há uns meses. Desde que se falou a primeira vez, em setembro, sobre a necessidade dela meu cérebro está esperando por ela. Mesmo sem a data marcada eu já estava: “cadê a reunião? Será que vai ser nessa aula?”. Quando se combinou o dia da semana que seria, mas não se fechou o dia, eu passei as semanas seguintes: “será que vai ser hoje? Não falaram nada? Não vai acontecer?”.
E aí podemos ver um aspecto da rigidez cognitiva. Minha cabeça entende que a reunião era pra ter acontecido meses atrás. Na minha cabeça eu já estou atrasada dentro do planejamento. E isso não é algo mutável com nenhum argumento lógico. Na minha cabeça toda minha estrutura foi por água abaixo por ela não ter acontecido meses atrás. E isso me trás a certeza de que eu já falhei na vivência que seria combinada, pois ela já está “errada”. “Ela não está acontecendo quando meu cérebro entendeu que aconteceria”.
Quando então marcaram a data da reunião precisei me preparar emocionalmente para estar nela. Eu chorei pq não conseguia antecipar como seria. Ensaiei as coisas que precisava falar. Treinei com pessoas se o que eu precisava falar tinha coerência. Tudo isso como forma de buscar alguma flexibilidade na minha rigidez e na sensação de desregulação que eu já estava vivendo por "estar tudo acontecendo diferente".
Chegou a reunião e novas variáveis foram apresentadas, juntando as variáveis que eu já tinha conseguido flexibilizar e aceitar. E meu cérebro “derreteu” imediatamente.
Foi como se apertassem um alarme de emergência na minha cabeça. Eu não conseguia mais falar. Nem o que eu tinha ensaiado. Na minha cabeça nada mais fazia sentido. Pois "tá tudo diferente". Minha rotina toda precisaria ser reprogramada e isso é vivido com uma intensidade extrema. Eu segurava o calendário e olhava as datas. Olhava tudo que ia ficar diferente. E via tudo que eu precisaria dar conta de mudar, tudo que existia livre, quantos dias até o final de tudo que precisava ser realizado.
Tentei usar como flexibilização dessa minha rigidez característica do TEA, uma estratégia de regulação que já havia entendido em outras vivências que me ajuda muito, que é o uso do humor e a potencialização do desconforto em forma de discurso cômico. Isso, no meu caso, ajuda a polarizar o que meu cérebro precisa processar e me dá a possibilidade de traçar estratégias lógicas e adaptativas entre a realidade apresentada e meu desconforto. É uma cadeira vazia que faço sozinha rs.
Mas tb não adiantou.
As pessoas me perguntavam coisas e minha voz não saia. Eu estava conseguindo escrever para uma amiga, mas mesmo assim não estava conseguindo elaborar muito.
Como uma pessoa com dupla excepcionalidade (sou uma pessoa com Altas Habilidades também), minha capacidade de resolução de problemas e estratégias de adaptação é incrível. Com muita criatividade inclusive. Porém, pelo TEA isso fica atravessado em um ritmo diferente do que a Altas Habilidades poderia ter, e fica um ajustamento específico, num ritmo totalmente contrário. Em dois dias talvez eu tivesse a solução perfeita para tudo que estava precisando organizar prática e emocionalmente. Mas nem sempre esses dois dias existem, eis que chegaremos a parte da formação de crises.
Nessa situação eu entendo a capacidade que tenho para realização do que alí é necessário, minha disfunção executiva não me ajuda no meu ajuste básico para eu executar qualquer ação que me leve a isso, minha rigidez cognitiva potencializa a dificuldade adaptativa para que me modele e realize essa função e eu implodo ou explodo.
Isso remete a um ciclo de auto regulação que não consegue chegar aonde é necessário. O acesso a nossos fundos de vividos, nessas situações, muitas vezes, nem com suporte será algo que nos é possível trazer o ajustamento para a assimilação desse contato. Não é nem que necessariamente não acessemos esse fundo. Muitas vezes o que não conseguimos é ler o que acessamos ou produzir um material com o que está disponível (e às vezes até claro) nesse fundo. Isso pode levar a uma desorganização que seja tanta que a crise se faz presente.
Junto com tudo isso vem os atravessamentos sensoriais. O mundo se torna presentificado em figura, o corpo e seus sons incomodam.
Uma amiga vendo meu movimento e como estava crescendo a curva da desregulação, tomou a iniciativa de interceder por mim na situação. Se oferecendo como um suporte. Foi um movimento muito cuidadoso. E que sim, me traria a possibilidade de ajuste a variáveis bem menores. Mas eis que entra a rigidez cognitiva novamente: a proposta trazida por ela consistia em "quebrar uma regra". E quebrar uma regra justa para a maioria. Na leitura de alguns eu poderia ter "um privilégio" (lembrando que inclusão não é privilégio, é direito). E na minha cabeça isso ia o tempo todo no mesmo lugar de “está tudo completamente diferente do que era para ser. Eu já não sei mais ser aqui”.
Percebem que é um funcionamento rígido mesmo? Não é uma coisa do "meu jeito tem que ser o jeito". Pois até o que foi para o “meu benefício" me trouxe dor e desajuste. Pois foge a execução de um planejamento, de uma previsibilidade. Mudanças, boas ou ruins, exigem maleabilidade neural. Uma maleabilidade que pessoas autistas não têm ali tão acessível.
Tudo isso me levou a uma crise de choro e exaustão, que perdurou até o dia seguinte da reunião. Minha execução de tarefas ficou extremamente prejudicada por cerca de uma semana. Me alimentar foi dificil, pois não conseguia lidar com a variação de texturas da comida, tudo isso em decorrência a crise gerada por essa situação.
Percebem que estou falando sobre um percurso de regulação que está acontecendo a mais de mês, mas que, muito provavelmente, para uma pessoa de fora essa crise seria lida como algo que veio “do nada” ou completamente desmedida pro que “acabou de acontecer na reunião”? Outro ponto importante nisso é: se vocês olhassem pra mim no momento antes da crise de choro que se deu, vocês veriam uma pessoa no máximo com uma aparência irritada, assustada ou cansada. Nada demais pra quem não está em atenção ou não tenha informação sobre o caso. O nome disso é mascaramento. E em pessoas autistas adultas costuma ser algo MUITO enraizado. Pessoas nível 1 de suporte então, são pessoas que sofrem demais com esse “ajustamento”.
No dia da reunião eu estava bem à vontade nos meus STIMS (o que me ajuda bastante na regulação), o mascaramento tava um pouco menor. Mas ainda sim muito forte. O mascaramento pode levar a pessoa autista além do seu limite de saúde em algumas situações.
Vocês percebem que a adaptabilidade da pessoa autista para o funcionamento neurotípico nem sempre é um recurso justo para ela mesma?
Pessoas autistas costumam estar em constante desconforto com algo. Pessoas nível 1 de suporte crescem estimuladas a viver o desconforto como natural para se manterem "sendo menos autistas".
Por isso é extremamente comum que tenhamos um desempenho social aceitável mesmo sem condições. Pois qual o limite de não aguentar? Como a gente mede o que não é justo? Como somos aceitos se não fazemos isso?
Trabalhar a consciência dos limites e dores com as pessoas autistas é precioso. Cuidado que precisa ser presente.
Nem que seja para que possamos criar uma regra para gerenciar nosso limite.
No meu caso, meu limite ainda fica mais fácil de ser extrapolado pela exigência de uma regra e um compromisso com o outro. Isso é rigidez cognitiva, novamente. Se existe uma obrigação que me gere, eu preciso ser justa à essa obrigação. O senso de justiça em pessoas neurodivergentes, principalmente AH, é um ponto extremamente delicado também, que traz muita exigencia e uma hiperempatia. Tem grandes vantagens, porém também é muito delicado cuidar do impacto desse atravessamento.
E vocês entendem o quanto tudo isso, se não narrado por mim pra vocês “passaria batido”? E como ser nível 1 de suporte e ter altas habilidades não significa que eu não tenho um impacto significativo na minha vida, que sou menos autista, que o que vivo é leve ou que tenho sorte?
Percebem o quanto na clínica e na vida uma pessoa como eu pode passar sem ser percebida?
Esse depoimento pode sequer acontecer. Pois a vergonha e a inadequação experimentada pela pessoa por romper a "norma do bom funcionamento", pela infantilização que oferecem como acolhimento em alguns contextos, é violenta. Pode não acontecer pelo medo de sair da norma do "adulto não age assim" e consequentemente resultar em mais mascaramento ou desvalorização de sua condição. Da banalização da emocionalidade experiênciada.
Eu como uma pessoa que trabalha com isso tem muitos anos, como uma pessoa que estuda sobre capacitismo, pra mim, ainda dá pavor falar nesse contexto em primeira pessoa. Não é, e não foi, fácil trazer isso tudo… Imagina pra quem sequer entende, ainda, que sua vivência é neurodivergente? Como ter coragem de verbalizar vivências do tipo?
Eis que entra o nosso papel e nosso compromisso em gerar uma sociedade que favoreça a expressão das alteridades e o acolhimento e a inclusão das mesmas.
Fica a reflexão, essa micro palestra dos funcionamentos autistas, rs, para que sigamos desmistificando sobre. E principalmente para que possamos entender que inclusão é, e precisa ser, também social e atitudinal.
Obrigada inclusive às pessoas que se fizeram rede e suporte nesse dia. Foi importante demais!
obs.: Peço desculpas se algo ficou confuso. Esse texto foi escrito exatamente durante a crise. Um dos ajustes de regulação que tenho é escrever o que sinto para poder me entender e me acolher melhor. Só o reli rapidamente uma vez pós crise, pois como ainda é recente, me cansaça p contato com a sensação novamente. Peço a compreensão para qualaquer erro e confusão.
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